DIÁRIO DE PASSAGEM
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Diário de Passagem
Marcus Vinícius
2010
Série fotográfica
(12 imagens)
97,5 cm x 130 cm cada
São Petersburgo, Rússia
Intimate Immensity
A imensidão Íntima
2010
Performance
Artista: Marcus Vinícius
Registro fotográfico: Maria
Fedorova
VIII International Festival of
Experimental Arts
Manege, the Central Exhibition Hall,
São Petersburgo, Rússia
“A imensidão está dentro de nós”
(Gaston Bachelard)
Em agosto de 2010, Marcus Vinícius participou, na Rússia, de uma residência artística de 16 dias no Studio 32, e do VIII International Festival of Experimental Arts, onde apresentou duas performances: “No one/ Ninguém” e “Intimate immensity/ A imensidão íntima”. Este último trabalho, cujo título foi extraído do livro A Poética do Espaço, do filósofo francês Gaston Bachelard, tratava, segundo Marcus, “da cotidianidade do homem e da construção de si mesmo numa permanente e natural relação de afeto como seu entorno, natureza, corpo, espaços, coisas”. A performance consistiu em percorrer, de olhos vendados, caminhos da cidade de São Petersburgo, visitando lugares, paisagens, conhecendo pessoas, compartilhando vivências, e produzindo encontros onde se realizaram imagens que Marcus Vinícius denominou “paisagens cegas”, acumulando/registrando visões e construções desse ser e seus vínculos. Estas seriam, a princípio, fotografias realizadas por pessoas que ele encontrasse e criasse relações durante o percurso, registros das descrições que estas mesmas pessoas fariam, para o artista, que permaneceria de olhos vendados, das paisagens daquela cidade de arquitetura tricentenária, incluindo “a vida em suas grandezas e pequenices, em seus potenciais de estranhamento e suas banalidades”. Além disso, embora não pudesse contemplar as paisagens com os olhos, o artistia as ouviria e sentiria, dentro de sua própria imensidão interior, deixando-se atravessar por seus afetos diversos, inclusive na sonoridade das palavras ditas em russo, cujo significado lhe seria desconhecido. Aqui, Marcus buscava responder à provocação feita pelo artista romântico Caspar David Friedrich, que propunha primeiro fecharmos o olho corpóreo para podermos enxergar através do olho espiritual.
Nos arquivos digitais constantes do acervo deixado por Marcus Vinícius, existe uma pasta de imagens com o nome “Diários de passagem – Rússia”. Ela contém uma foto do artista, de olhos vendados, sobre uma ponte, durante a performance “Intimate Immensity”, registrada pela artista Maria Fedorova, e outras onze imagens, sem descrição de autoria, porém já editadas pelo artista, que mesclam registros cotidianos da cidade e alguns registros do artista interagindo com a arquitetura local, porém não mais de olhos vendados. Também acompanha um texto, transcrito abaixo, que relata a experiência vivida na Rússia.
Desse conjunto, Marcus chegou a expor três delas em dezembro de 2010, na exposição “Transcendências”, realizada no Palácio Anchieta (Vitória, Espírito Santo, Brasil), sob a curadoria de Almerinda Silva Lopes e Maria Helena Lindenberg, sob o nome “Diários de Passagem”. Essas três fotografias incluem o registro acima citado da performance “Intimate Immensity”, uma de um transeuntes e cães em um ponto de ônibus em Nevsky Prospekt, e uma de um cadeado em forma de coração, preso à Bolsheokhtinskly Bridge. As demais imagens, até hoje inéditas em espaços expositivos, continuam não-identificadas e dão a entender que poderiam compor o restante da série, mesclando as paisagens cegas a outros registros das andanças feitas pelo artista durante o período.
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diário de passagem _Rússia
por Marcus Vinícius
Saint Petersburg, 14 de agosto de 2010.
“Se acerca mi turno. Otra vez, estoy en la frontera.”
(Gonzalo Beladrich, Bolivia, p. 124)
Ontem, 13 de agosto de 2010, caminhando sem rumo pelas ruas da magnífica cidade de Saint Petersburg, finalmente a ficha caiu. Após 10 dias na cidade, sobrevivendo com meu inglês meia boca, me dei conta de que realmente estou na Rússia. Sim, na Rússia! Outro continente, outro hemisfério, outra realidade. Estando aqui, pude sentir que aquele menino que sonhava voar, criou asas. E voou! É, eu consegui. Estou distante, mas não apenas pela distância geográfica que existe entre o meu atual país de residência e o lugar em que estou. Mas digo isso porque agora posso ver (e sentir) a proporção que o meu trabalho ganhou, logo depois de tantos anos de criação, projetos, experiência.
Como num filme, caminhava pela Bolsheokhtinskly Bridge e me lembrava nostálgico de todos os lugares, pessoas e paisagens que conheci. Estar na Rússia é como um sonho, algo nunca imaginado. Mas já faz um tempo que eu aprendi que “viver é melhor que sonhar”. Então vamos lá... sigo meu caminho... aprendendo, sorrindo, desejando, buscando e encontrando. Chegar até aqui não foi fácil, não apenas pelas 16 horas de viagem. Chegar aqui, encontrar-me com Marcus Vinícius, não foi fácil. Quanta coisa teve que acontecer. Foram muitas lágrimas escorridas dos meus olhos (e não só dos meus), muitos abraços foram compartilhados, muitas cervejas foram tomadas. E, além disso, muitas horas sentado em frente ao meu velho companheiro escrevendo e criando a poesia que me faz feliz... a arte que me leva cotidianamente a buscar o meu horizonte nômade.
Ontem, escutei a voz do meu coração dizer baixinho que era hora de compartilhar. Num estado de euforia, voltei pra casa sorrindo como um menino em dia das crianças e conectei-me ao bom e velho Skype e aos poucos foi ligando para aqueles seres tão especiais na minha vida. E escutar aquelas vozes, aqueles sorrisos surpresos ao me ouvir de tão longe.... Ah, isso não tem preço. Ao escutar o choro de minha grande amiga Soledad Velazquez, a euforia de Verónica Meloni, interromper uma reunião de Carol Veiga, romper o silêncio de Juan Manuel Sogo, as tiras de humor de Julio Pitek, a graciosa (e bonita) surpresa mexicana de meu tão querido Miguel, as perguntas bobas da minha pequena irmã Thaís, a surpresa da minha querida mãe Kelsia e tantas outras reações que ouvi nesta noite, me fizeram ver o quanto essa vida tem sido generosa comigo. Alguns não puderem me atender, de outros não tinha o número aqui, mas sintam-se muito queridos e lembrados. Por onde andei, me encontrei com a alegria, com o amor, com a gratidão. Aos amigos e amores, obrigado por fazerem parte da minha vida e também por fazerem parte do caminho que percorri até chegar aqui. O mais engraçado de tudo foi ouvir de quase todos vocês: “Marcus, você é um louco!”. Sim, sou louco pela vida. Louca pela arte. Louco de vontade de viver a vida intensamente, buscando sempre o lado claro das coisas. Sei que temos muito pouco tempo aqui, e tudo passa tão rápido... e aí vem aquela sábia frase: “Se correr o bicho pega, e se ficar o bicho come!”. Então...
Dias atrás, concedi uma entrevista para o jornal Сahkt Петербургские ведомости -um dos principais jornais da cidade de Saint Petersburg-, e num momento a jornalista perguntou o que, para mim, significava fazer performance? Silenciei. E não tardei a responder que, para mim, fazer performance é simplesmente viver. É estar conectado com o mundo, com o outro, com o espaço, com o tempo. E é simples assim. Aqui em Saint Petersburg, estou realizando o projeto A imensidão íntima, no VIII International Festival of Experimental Arts. Esse projeto nasceu ainda na cidade de La Plata, mais precisamente na tarde do dia 14 de junho de 2009, quando subi “a la terraza” daquela casa em que fui tão feliz e me dei conta de que eu poderia romper o silencio da paisagem e provocar ruídos surdos que pudessem reverberar sobre outros olhares. O projeto A imensidão íntima, título extraído do livro A Poética do Espaço, do filósofo francês Gaston Bachelard, trata da cotidianidade do homem e da construção de si mesmo numa permanente e natural relação de afeto com o seu próprio corpo, o seu entorno, a natureza, os espaços, as coisas. A idéia era percorrer caminhos da cidade, visitando lugares, paisagens, conhecendo pessoas, compartilhando vivências, produzindo encontros, acumulando e registrando visões e construções desse ser e seus vínculos.
Num dado momento, silencio e um Outro veda os meus olhos com um tecido de cor preta que impede completamente a minha visão. Esse Outro me concede a sua mão e juntos caminhamos pela cidade por um tempo indeterminado. Tal caminho é o encontro com a minha imensidão íntima.
“Feche o seu olho carnal para ver a imagem primeiro com o olho do espírito; então traga à luz do dia aquilo que viu na escuridão, para que a imagem gerada possa existir sobre as demais de fora para dentro.” (Caspar David Friedrich)
Em muitos momentos, me emociono. Não consigo conter as lágrimas. E insisto, para mim, é uma emoção imensa estar aqui. A atitude de entrar em minha memória pessoal e configurar um olhar atento para dentro se torna um movimento de resistências contra a apatia e a amnésia geradas por um avassalador panorama externo de excessos. A imensidão íntima fala do desejo. Do desejo como lugar de transformação do nosso ser, ainda que seja somente por poucos segundos, para abrir um universo que unifica passado e futuro, quando criamos uma zona intermediária (timeless), quando podemos ser tudo que quisermos. E mais, me permito dizer que o desejo está posto no corpo. O corpo, por ser o locus do desejo, produtor de sentidos, se torna potencia em si: um corpo vibrátil, político, sem necessariamente ser violento, que não se submete a imobilização ou a ser domesticado, escapando dos mecanismos de dominação e controle. Na minha imensidão íntima, o corpo é o lugar da inflexão da realidade. E a imensidão está em nós.
Agradeço imensamente a Secretaria de Cultura do Espírito Santo pela oportunidade que me deram custeando a minha viagem até a Rússia, com a aprovação do meu projeto no edital de ‘apoio cultural-financeiro para custeio de despesas com locomoção de artistas’. E também a minha família, que aos trancos e barrancos, estará sempre ao meu lado. Por que em mim eles aprenderam a confiar e hoje são os meus principais incentivadores. Obrigado por tudo que vocês fizeram e ainda continuam fazendo por mim. E amor é uma coisa que não tem preço.
Agora estou aqui, sozinho, no 6º andar de um velho edifício no centro de Saint Petersburg. É o estúdio da divina artista local Maria Casan, que ainda acredita na força da pintura e pratica tal exercício lindamente. Através de uma pequena janela, vejo uma grande quantidade de grades, arames e fios. Tudo aqui é tão seco, tão duro, tão áspero. Lembro-me muitos dos dias incríveis em que estive na Polônia, aquele país imensamente lindo e cheio de história para contar; mas com uma tristeza arraigada no cerne. Saint Petersburg talvez também seja assim. Coisas da tal História, né. Lembro-me ter aprendido nas aulas de Geografia que a Rússia era um país frio, algo congelante só de pensar. E aqui, pisando nestas terras, me dei conta de que fui enganado durante todo esse tempo; porque o inferno é aqui. Alguém pode imaginar uma temperatura de 40ºC na Rússia? Não. Nem eu, até o momento em que vivi tal experiência. Saint Petersburg 40ºC, cidade da beleza e do caos.
Mas lhes digo uma coisa: essa cidade é imensamente linda! E é de uma magnitude inexplicável. Os meus olhos têm visto tantas coisas lindas, tanta gente linda. Tudo aqui é tão grande! A todo tempo, caminho olhando para cima. A beleza inigualável dos edifícios antigos, o caos no trânsito, as peles brancas que parecem saltar de uma pintura, os olhos verdes que se multiplicam, a elegância feminina, a arrogância na maior idade herdada da antiga União Soviética, a extrema beleza masculina. Está tudo aqui, guardado em minha memória.
E explicação nenhuma isso requer, se o coração bater forte e arder...