Terceira de três vinhetas animadas elaboradas por Filipe Dell'Antonio, criador da identidade visual do projeto "Imensidão Íntima - Acervo Audiovisual Marcus Vinícius" (abril de 2024).
Silêncio talvez não seja falta de palavras, mas sons de que ainda não conseguimos ouvir *
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Querido Erly,
Diante de seu convite irrecusável (mas não por isso fácil de ser realizado, uma vez aceito) de escrever um texto para o site do projeto Imensidão Íntima: Acervo Audiovisual Marcus Vinicius, preciso adiantar, de antemão, duas coisas: a primeira é que o que trago aqui é afeito menos a convicções, do que a impressões, sugestões, ideias avulsas, que foram ganhando forma enquanto tentava honrar com o compromisso de fazer existir este texto. Tomei a liberdade, portanto, de apresentá-las aqui numa articulação ainda muito inicial. São anotações breves e fragmentárias. Mas espero que, apesar disso, apresentem alguma consistência. A segunda é que, contrariando suas expectativas, e talvez para sua decepção (apesar de fazer votos para que não se decepcione), o texto que vem não é sobre a obra do MV. Aqui sinto que lhe devo uma explicação, que se estende também para quem porventura esteja lendo este texto.
Que “responsa” a minha seria falar qualquer coisa que seja da obra do MV diante de você, amigo, entusiasta, pesquisador dedicado e comprometido com a reverberação do conjunto da obra deste artista. E que isso não soe como falsa modéstia minha, tampouco como desautorização para que outras pessoas não possam fazê-lo. É que você vem sondando e rastreando faz tempo essa vida-obra (ou vidarbo [1], para lembrar a palavra da saudosa Sandra Mara Corazza), de modo muito cuidadoso para não sair legendando os trabalhos artísticos do MV como se fosse possível localizar numa vida de onde saiu uma obra. Tarefa árdua para qualquer pesquisador não cair nessa armadilha, especialmente quando se está a tanto tempo debruçado sobre um determinado acervo. A desenvoltura com que você, junto ao acervo do MV, opera o desvio dessa armadilha me lembra, antes de qualquer coisa, que é preciso prudência. Precaução que justifica, inclusive, meu receio em seguir por esse caminho - ao menos por enquanto, porque quero sondá-lo com a devida acuidade, em algum momento posterior.
Por outro lado, o caminho que optei seguir nem é mais seguro ou cauteloso, como se poderia imaginar, é igualmente arriscado (até mesmo inconveniente - rs). Optei por pensar sobre alguns dos seus gestos curatoriais no movimento de instauração deste projeto. Interesse esse que, em parte, foi emergindo no curso do trabalho de co-criação do site no qual o acervo audiovisual Marcus Vinícius encontra-se publica e gratuitamente disponibilizado. Fui tomado de assalto por um certo interesse em desdobrar algumas escolhas sua como mediador/interlocutor deste acervo, no contexto de realização deste projeto. E, em parte, de um interesse que atravessa meu projeto de pesquisa atual, que é o de rastrear/sondar modos contra-hegemônicos de difusão das produções artísticas e de inscrição [2] de fortunas críticas junto a elas - e que não estejam ventilando em suas práticas a mesma gramática de poder que, no âmbito dos seus próprios discursos, é alvo de crítica e contestação. De algum jeito, sintonizar minha atenção aos seus gestos, na tentativa de estabelecer uma conversa ao redor da potência silenciosa de algumas dessas suas escolhas (ou, em outras palavras, estratégias formais), também se apresentou como um campo empírico fértil, retroalimentando em muito essa investigação que cada vez mais se impõe a mim. Diante disso, o que vem, vem em forma de agradecimento. E aqui me explico mais uma vez.
Há pouco tempo me deparei com a transcrição de uma conversa [3] entre Luiz Camillo Osorio e Patrick Pessoa, em que o último diz algo que chamou minha atenção. Quando ele, o Patrick, pensa-escreve sobre um trabalho que de algum modo o moveu, o pegou, o tocou, o interpelou, o chamou na chincha, ele no fundo está agradecendo ao trabalho. Longe de fomentar aqui uma apologia rasa e gratuita da gratidão (como o próprio Patrick faz questão de pontuar). Sinto que pensamos-escrevemos mais para expressar nossa consternação do que nosso agradecimento em relação às coisas. E não deixa de ser bonito pensar nessa co-implicação entre pensar-escrever e agradecer, compondo com aquilo que nos convoca, nos atravessa, nos desloca, nos desconjunta. Encontros feitos de reciprocidades. Pois bem, ainda nessa mesma conversa, pouco mais adiante, Patrick se pergunta: “E como é que se faz para agradecer?”. Eis então que responde dizendo que, no seu caso, tenta agradecer continuando a conversa com o trabalho, de modo que o que emergiu nesse encontro possa ir fermentando, ir crescendo. Agradece, então, escrevendo uma espécie de carta para o trabalho, para esse seu novo amigo, na tentativa de continuar pensando junto a ele.
Por isso que o que vem não poderia vir de outra maneira que não sob a forma de agradecimento – essa tal vontade súbita de continuar conversando com a potência silenciosa de algumas das suas escolhas no movimento de instauração do projeto Imensidão Íntima: Acervo Audiovisual Marcus Vinicius. Uma tentativa, talvez, de pensar-escrever junto a elas, fazendo-as render e ressoar mais e mais.
Sem mais delongas, de modo sumário, eu diria, sem nem de longe pretender esgotar ou dar conta de todas suas escolhas (se é que seja possível - rs), que duas delas convocaram minha atenção de modo especial. A primeira tem a ver com o sentido de existência do projeto, aquilo que precede sua ideia, levando a instituí-lo enquanto projeto e que não se restringe somente a objetividade de disponibilização online e gratuita do conjunto da obra audiovisual de Marcus Vinícius (1985-2012). Tentando relembrar, ainda posso sentir toda sua euforia na tarde do dia 29 de janeiro de 2024, quando veio em minha casa apresentar o projeto e conversar sobre a criação do site. Impossível não notar quão grande é o seu carinho pelo MV, pelos trabalhos dele e por todo aquele acervo. Não que em algum momento, desde que te conheço, tenha me passado despercebido seu fascínio e admiração pela obra dele. Com certeza não. Mas acho que foi a primeira vez que tomei pé da dimensão de sua implicação íntima e pessoal. Seus olhos brilhavam e as palavras não lhe faltavam. Havia ali uma alegria e um entusiasmo imenso em me pôr a par de um pouco de tudo. Desejo latente de partilha. Inevitável não se contagiar também.
Talvez quem veja de fora a figura do pesquisador Erly Vieira Jr – que anos antes, em 2016, organizou e publicou o livro “Marcus Vinícius: a presença do mundo em mim”, fruto inclusive de uma longa rodada de aproximação/interlocução com o acervo do MV – possa se perguntar: o que haveria de novo que o faz mergulhar nesse acervo mais uma vez? Formulação um tanto quanto capciosa, bem ao gosto da lógica e da logística capitalista-positivista, que sabemos ter seus admiradores. Particularmente, me interessa mais a segunda parte dela, e fico me perguntando: o que te leva a mergulhar nesse acervo mais uma vez? Poderia responder que é essa sua paixão, cujo carinho e admiração por MV não se arrefecem. Tanto que, contigo, me dou conta de que quando a gente se apaixona pela obra de um artista, tudo o mais não passa de um simples pretexto para continuar engatando com ela uma conversa infinita – como nos termos de Maurice Blanchot. Poderia responder, também, que é pela força da obra do MV. Afinal de contas, qualquer pessoa que se dedique à investigação de sua obra dificilmente poderá negligenciar o fato de que quanto mais nos aproximamos dela, mais encontraremos razões para ali regressar.
Mas, talvez, a melhor forma de responder a essa pergunta seja lembrando de uma fala pública [4] de Fabiana Dultra Britto (professora da UFBA, e uma importante pesquisadora brasileira do campo da dança) a respeito do exercício da condição política dos nossos trabalhos. É bem verdade que a fala da Fabiana busca refletir esse exercício no campo dos trabalhos em dança. Entretanto, se tomada em uma perspectiva mais ampla (como farei a seguir), sua reflexão se estende facilmente para muitas outras áreas de pesquisa e atuação. Toda trajetória de trabalho começa pela esfera íntima, isto é, por uma certa disposição pessoal em fazer alguma coisa com a nossa própria vida que saia da nossa própria esfera íntima e pessoal. E sair para onde?, ela se pergunta. Para alguma coisa que compartilhamos com alguém. No trabalho de pesquisa, por exemplo, não pesquisamos apenas para nós mesmos, mas sobretudo para as outras pessoas.
Nesse sentido, todo trabalho começa com um foco de atuação que parte de uma esfera íntima e pessoal para compartilhar nosso próprio ponto de vista a respeito de alguma coisa com outras pessoas, em outras instâncias. Essas outras instâncias, lembra Fabiana, constituem a esfera coletiva, a esfera da sociedade, esfera do ambiente em que vivemos, atuamos e nos relacionamos cotidianamente. Ocorre que, poucas vezes, o que fazemos acaba alcançando uma terceira esfera, para ela a mais importante, que é a esfera pública, junto a qual podemos exercer a condição política das nossas ações no mundo.
Ocorre que a esfera pública dessa atuação, sublinha Fabiana, não se vê muito facilmente em quase nenhum trabalho, seja de dança seja de outras áreas. Mas por quê? Segundo ela, porque a maioria dos investigadores e pesquisadores, independentemente da área de atuação, se dá por satisfeito muito rapidamente com sua própria articulação pessoal a respeito de alguma coisa. E de fato, se observarmos bem, não são raros os que buscam estabelecer essa articulação a fim de produzir seu próprio espaço profissional, dando-se, em seguida, por satisfeito. E não que essa busca em si seja um problema, afinal ela é um dos efeitos inerentes a tudo que fazemos. O problema é quando ela deixa de ser um efeito e passa a ser um objetivo em si. Porque quando essa busca torna-se um objetivo em si, perdemos de vista a possibilidade de exercitarmos a condição política dos nossos trabalhos. Em outras palavras, o problema reside, em darmo-nos rapidamente por satisfeitos quando a alcançamos, impedindo que o que fazemos potencialmente chegue, tensione e tome parte dessa esfera pública.
Faço ressoar essa reflexão porque ela ajuda a responder, com o devido cuidado, a pergunta que me fiz acima. Junto a Fabiana, arrisco-me a dizer que o que te leva a mergulhar nesse acervo mais uma vez é, justamente, a possibilidade de continuidade de um processo de trabalho que visa alcançar essa esfera pública de atuação. Sim, porque o que está em jogo na realização deste projeto não é a emergência de uma articulação pessoal sua a respeito da obra do MV que afiance a construção de sua carreira e/ou que referende seu reconhecimento profissional; mas, sim, a possibilidade concreta de continuar exercitando a condição política do seu trabalho junto a esse acervo. E por que continuidade? Porque se trata de um exercício em curso, iniciado lá atrás, em 2015, quando do contexto de intermediação da doação do acervo do MV por parte da família do artista à Galeria de Arte Espaço Universitário (GAEU), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mas continuidade em direção a que? De mãos dadas com Fabiana, ouso dizer que em direção à instauração de condições de possibilidades de relacionamento e interlocução com esse acervo, que sejam muito mais acessíveis ao público em geral e, em virtude disso, muito mais orgânicas, espontâneas, plurais, variadas e complexas em relação às que poderiam ser estabelecidas em âmbito institucional, junto a Seção de Acervo e Coleções da GAEU.
Ao fazer isso, você dá uma rasteira na objetividade cientificista que rapidamente tomaria esse acervo como objeto. Porque não se trata, nem nunca se tratou, de tomá-lo como objeto. Trata-se, sim, de torná-lo público, de maneira que muito mais pessoas - que não apenas investigadores e pesquisadores - sintam-se convidadas a mergulhar nesse acervo. E por meio desse mergulho, não só ascender à imensidão do poder inquietante e provocador da obra do MV. Mas, também, por meio desse mergulho, enredar-se e engajar-se nele de modo tal que muito mais pessoas se sintam compelidas a tomar parte num processo contínuo de elaboração de fortunas críticas junto à obra do MV. Se isso que estou confabulando faz algum sentido, talvez resida aí a potência silenciosa dessa primeira escolha sua que convoca minha atenção e que procurei, aqui, fazer render e ressoar de alguma forma.
Já a segunda escolha que gostaria de comentar tem a ver com o modo como você agencia o conhecimento desse acervo audiovisual do MV. Como disse no início desse texto, e acho importante relembrar, é mesmo uma tarefa difícil para qualquer pesquisador, no curso de suas investigações, não ceder à postura tradicional de inspiração positivista, cujo compromisso reside na busca pela verdade dos fatos e na fidelidade cronológica dos acontecimentos. É preciso uma tomada de posição e disposição ética para desviar, desafiar e romper com o tom memorialista de causa e efeito, daquele que busca explicar o conjunto da obra de determinado artista a partir de uma lógica linear, coerente, verdadeira e plena de significação. Vemos isso acontecer, com mais frequência, nos casos em que o foco do trabalho de investigação é a obra de artistas que não estão mais neste plano. Mas não só, também podemos notar isso permeando trabalhos cujo foco de investigação é a obra de artistas que estão aí em plena atividade.
Retomando a reflexão da Fabiana, fico pensando que a pressa com que a maioria dos investigadores e pesquisadores busca estabelecer a sua própria articulação pessoal a respeito de uma obra, a fim de alavancar a construção da sua carreira e do seu próprio espaço de reconhecimento profissional, por exemplo, os impede muitas das vezes de se questionar sobre o modo como essa articulação se deu, perpetuando esse modo sem sequer perceber o quanto pode ser intolerável, como alerta Leila Domingues [5]. O que acaba por resultar em estratégias discursivas de mediação da obra que, no afã de encontrar seu sentido lógico (sua razoabilidade retrospectiva e prospectiva), em vias de regra, acaba gerando muito mais o engessamento do seu devir do que produzindo ficções a mais no encantamento com ela. Como se fosse realmente possível explicar o sentido misterioso que a obra teria ou oferece. A esse respeito, lembro, por exemplo, do modo contundente como Jota Mombaça se posiciona sobre essa questão, em sua carta cifrada à Castiel Vitorino Brasileiro:
“Há algo no que estamos fazendo que não pode ainda ser apreendido nem por nós mesmas nem pelas gentes e coisas que nos cercam. Por isso não há linguagem para descrever a força que me arrasta até o seu trabalho, mas também não há nada por desvendar. Nós ouvimos os sussurros e nos dedicamos a montar e desmontrar o quebra-cabeça. Um manjericão roxo na sua garganta, uma raiz costurada com tinta vermelha. Eu não me interesso pelo significado dessas imagens, mas pelas profecias que há nelas. Em outras palavras: não é o significado, mas o sussurro que me motiva. O que eu consigo ler não é o foco, pois a nossa conversa está no ilegível.” [6]
Ou, ainda, como se fosse realmente possível traduzir a obra para o público em geral, a fim de oferecer, uma interpretação dita “especializada” acerca das suas possibilidades de fruição – o que, convenhamos, mais parece subestimar a inteligibilidade da obra e da experiência estética pelo chamado “cidadão comum”, do que atuar em favor de sua participação na experiência do debate público e na constituição de diálogos coletivos transversais junto a ela. Essa inócua necessidade de explicações que, como bem lembra Manuel de Barros [7], só afasta as falas da imaginação. Ou, como alerta Jota Mombaça, abafa suas profecias.
Me interessa muito mais pensar que a obra está além e aquém de qualquer explicação. Ela, assim como os habitantes do limbo de Giorgio Agamben [8], é plena de uma alegria para sempre não destinável. Enquanto tal, parafraseando Rosane Preciosa [9], a obra simplesmente segue seus fluxos, sem ponto final visível de desembarque, prosseguindo, sem paradeiro, seu descontínuo destino, mas sempre deixando rastros de sensibilidade em quem se dispuser a acompanhá-la. Lembro-me, inclusive, de tomar nota de um comentário de Rosane Preciosa, e em que ela partilha a seguinte suspeita: “Não me parece que algum artista saiba com precisão de onde vem o seu trabalho. Não sabe, há apenas pistas”. E essa suspeita ganha contornos mais espessos quando penso no trecho que Jota Mombaça diz: “Nós ouvimos os sussurros e nos dedicamos a montar e desmontrar o quebra-cabeça”. De maneira que, retornando minhas notas do comentário de Rosane Preciosa, “algum acaso, um encontro, força o artista a tornar uma sensação de algum modo tangível, e o resultado disso é que, ao dar passagem às forças sensitivas que o captura, as faz proliferar, arremessa-as para, quem sabe, alguém talvez recepcionar essas novas formas de vida que suas obras engendram, amplificando sua rede de sentidos num fim sempre adiado”.
O que implica dizer que não se trata de desvendar, traduzir e explicar um mistério que está lá na obra, mas sim de fazer vibrar ainda mais suas profecias (como nos termos de Jota Mombaça), sustentando a potência que essa obra tem de se desdobrar em leituras fecundas e transformadoras, sem proprietários individuais e/ou verdades absolutas.
Enquanto tal, a lógica da explicação cede espaço à lógica da conversação. E é justamente isso que diferencia o seu gesto de muitos dos seus pares. Não lhe interessa, Erly, fixar uma narrativa que sufoque a trajetória artística em devir do MV, desinvestindo, assim, a obra desse artista de qualquer vínculo que busque afirmar uma poética encerrada. Pelo contrário. Ao atender ao chamamento deste acervo para conversar com os signos que colocam em pé a obra do MV, você vai cuidadosa e amorosamente doando sentidos provisórios, enlaçados por elos de sutis afinidades, justamente para não apertar demais o laço das significações. É que para você esses signos não são meras informações a seu dispor. São, cada um deles, acontecimentos singulares, que você procura honrá-los, traçando, você também, um caminho singular junto à inesgotável abertura para os possíveis, ainda não dados, dessa obra; na aspiração de ser justo com o que, na poética desse artista, insiste e resiste em ser significado.
Ao traçar esse seu caminho singular, você não só engaja a imaginação de quem, porventura, venha a se confrontar com esse acervo. Você estabelece, também, as condições para que nós mesmas/os possamos instaurar nossos próprios modos de relacionamento com esse acervo e de conhecimento com a obra do MV. Ouso dizer, de mãos dadas com Guimarães Rosa [10], que o que você nos propõe com a sua tomada de posição ética é um sentir-pensar essa obra, desprendido das amarras de uma fidelidade objetivista. Porque não adianta ir para o encontro de uma obra com um guia de leitura prévio. Afinal de contas, cada obra vai oferecer, na experiência de sentir-pensá-la, as chaves da sua própria inteligibilidade. É como se, no fundo, você nos lembrasse: é preciso ler a obra do MV nos próprios termos dela, e não segundo meus termos. E ao nos lembrar disso, você nos convida a ir de peito aberto para o encontro com essa obra, abrindo-nos para encontros inesperados e imprevistos, que vão dando uma vontade danada de seguir conversando com ela, de seguir sentir-pensando junto a ela, mantendo vivo aquele calor que ela segue transmitindo.
Convite esse que, para mim, é índice da potência silenciosa desta segunda escolha sua: a recusa em estancar, com significados tampões, o que se apresenta como manancial, algo em curso, prenhes de forças pulsantes de vida. Você não nos deixa esquecer de que MV é um artista cuja vida move a obra que movimenta a vida. E como não nos deixa esquecer? Lembrando-nos, à sua maneira, de que o primeiro passo na tentativa de tornar uma vida narrável parece ser aceitar que não existe um todo super-encaixado e coerente. Afinal de contas, como certa vez sublinhou Rubiane Maia [11] (outra grande parceira do MV), “é necessário demarcar que a própria coerência é um conceito criado por nós para explicar-justificar que aquilo que fazemos possui algum sentido. (...) Certamente a vida, de um ponto de vista naturalizado, possui uma cronologia. Mas ‘uma vida’ indefinida não seria uma força bem mais vasta, que potencialmente pode ir além dessa ideia do quando-onde-e-por quê?”.
Você, assim, nos oferece uma espécie de buquê de amarração frouxa. Frouxa não porque falta perspicácia e vigor à leitura que faz, mas por se recusar a tamponar sentidos por vir. Abre mão de narrativas que transpiram uma autoridade do dizer, para evocar a performance de sua leitura, no que ela traz de instante-já, buscando sintonizar um sentir-pensar agenciados por ideias-palavras, e que não são quaisquer, menos ainda categóricas. São apenas comprometidas com aquilo que, na obra do MV, te fere e/ou te arrebata, enredando-nos em uma conversa generosa e que também nos convida a falar, a experimentar e a dizer o que nos punge no encontro com esse acervo.
Caminhando para o encerramento, não posso deixar de dizer: MV tem muita sorte de ter encontrado você no caminho dele, e você tem muita sorte de cruzar o caminho dele. Há aí uma reciprocidade, uma cumplicidade e uma amorosidade raras, daquelas que impulsionam tanto a obra do MV quanto os projetos sensíveis e contundentes que vêm instaurando junto ao conjunto da obra do Marcus Vinícius, nos últimos anos. Imagino quantas coisas incríveis poderiam ter feito juntos, não fosse a partida dele.
Lembro-me, então, de outra fala da Fabiana Dultra Britto, em que ela traz uma linda reflexão do sentido de parceiros. Parceiros, para ela, são aqueles que reconhecem em nós a possibilidade de dar para eles a expansão das possibilidades de existência deles, e vice-versa. Ou seja, parceiros são aqueles em quem reconhecemos e com quem encontramos as possibilidades de expansão das nossas existências. Em outras palavras, parceria é alimento para expansão das nossas próprias possibilidades de existências. Nós precisamos que elas existam, justamente porque vislumbramos nelas e encontramos junto a elas a possibilidade de ver a nossa própria possibilidade de existência se expandir. E quando a gente encontra isso, porque é raro, é uma linda coincidência! A parceria bem feita, conclui Fabiana, é aquela que faz emergir uma linda coincidência. E isso é realmente muito bonito de se pensar.
Então - lá no fundo - esse texto não passa de um pretexto para agradecer e celebrar não apenas a iniciativa de realização do projeto Imensidão Íntima: Acervo Audiovisual Marcus Vinicius, mas sobretudo a potência de uma linda coincidência de parceria entre você e o MV, sem a qual esse projeto não teria a possibilidade de existir (pelo menos não com o vigor e a força que tem). E celebrar por quê? Porque no final das contas ganhamos todas/es/os, e que com interesse e disponibilidade poderemos sondar e reconhecer aqui, no encontro dessa linda coincidência de parceria, alguma coisa que nos permita ver a nossa própria possibilidade de existência se expandir também.
Lindomberto Ferreira Alves
Vitória/ES, junho de 2024
Notas:
* Frase extraída de uma fala de Rosane Preciosa, proferida em 16 de dezembro de 2021, quando de sua participação no encontro “A voz”, no âmbito do Ciclo de Debates Arredores da Imagem – promovido pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), em parceria com a Faculdade de Educação da UFRGS (FACED). Porto Alegre. Disponível em https://www.youtube.com/live/8Xno80XPiVo?si=JVg5yjBxtgVUnA5h
[1] Diz respeito a uma via de leitura e escritura que opera com vida e obra tomadas não em separado, nem como uma derivada (e até causa) da outra; mas, sim, enquanto vida-obra (Vidarbo), ou seja, enquanto contágio circular entre vida e obra, na qual o movimento da vida pressupõe o movimento da obra e vice-versa – sendo a construção de uma a construção da outra. Para mais ver: CORAZZA, Sandra Mara. Memorial de vidarbo: escrileitura biografemática. 2014. Memorial acadêmico (Memorial apresentado à Promoção à Classe E de Professor Titular da Carreira do Magistério Superior) – Faculdade de Educação, Departamento de Ensino e Currículo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.
[2] A opção pela palavra “inscrição” não é arbitrária, uma vez que sua adoção ajuda a expandir o campo prático do que chamamos de crítica de arte, para além da realizada através da grafia da palavra escrita. Inscrever fortunas críticas junto a arte passa pelo texto, é certo. Mas não só. Passa também por outras frentes e suportes, a exemplo da pesquisa, das políticas de gestão de acervos, da curadoria, da arte-educação, do trabalho de arte, etc., consubstanciando a assertiva da saudosa Glória Ferreira (2009), de que o que está em curso é um crescente deslocamento da atividade crítica para a esfera do campo expandido de reflexão e discussão das produções artísticas. Para mais ver: FERREIRA, Glória. Crítica e presentação. In: FERREIRA, Glória; PESSOA, Fernando (orgs.). Criação e crítica. Vila Velha: Museu Vale, 2009. p. 188-199.
[3] OSORIO, Luiz Camillo; PESSOA, Patrick. Luiz Camillo Osorio e Patrick Pessoa (05 de agosto de 2020). In: FABIÃO, Eleonora; ALCURE, Adriana Schneider (Orgs.). Janela abertas: conversas sobre arte, política e vida. Rio de Janeiro: Cobogó, 2023. p. 275-294.
[4] Fala de Fabiana Dultra Britto, proferida em 24 de novembro de 2011, quando de sua participação no evento “Conversa pública com Fabiana Dultra Britto”, no âmbito do Projeto Dança na Pedreira – promovido pelo Coletivo O12. São Paulo. Disponível em https://youtu.be/knFsjxCeWO4?si=UstMa48vo_Fsfvef
[5] DOMINGUES, Leila. O desafio ético da escrita. In: Psicologia & Sociedade, Recife, v. 16, n. 1, p. 146-150, 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/psoc/a/5tm5gqj5r9b6L5JRxyPWw5D/?format=pdf
[6] MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
[7] BARROS, Manuel. Memórias inventadas: as infâncias de Manuel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.
[8] AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Tradução Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
[9] PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade: sujeito e escritura em processo. Porto Alegre: Sulina, 2010.
[10] LORENZ, Günter W. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo de Faria (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1983. p. 62-97.
[11] MAIA, Rubiane. [Entrevista cedida a] Lindomberto Ferreira Alves. Vitória/Londres, 16 de nov. 2018.