Segunda de três vinhetas animadas elaboradas por Filipe Dell'Antonio, criador da identidade visual do projeto "Imensidão Íntima - Acervo Audiovisual Marcus Vinícius" (abril de 2024).
É possível banhar-se na própria escuridão devorante?
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Patagônia Argentina, maio de 2011. Um céu de início de noite, transbordando em tons de púrpura. Com a cordilheira dos Andes ao fundo, uma pequena embarcação navega em silêncio. Nas águas calmas da Playa del Toro, situada em Isla Victoria, a maior ilha do lago Nahuel Huapi, o barco, visto de longe, é um risco luminoso que desliza lentamente diante de nossos olhos. A bordo, em meio as inúmeras velas acesas e à solidão daquela paisagem monumental, Marcus Vinícius para de remar e contempla a profundidade de seu próprio desejo. Como relataria depois, num texto: “Agora, sei que estou na penumbra e me alimento com a própria e vital escuridão (...) Escuridão pulsante, lava úmida de vulcão em fogo intenso”.
Nos arquivos digitais que compõem parte do acervo do artista pertencente à GAEU-UFES, há um texto, compilando uma troca de mensagens em rede social, datado de 2011, que leva o nome de “No sem fundo da água…” Nele, temos uma conversa entre a pesquisadora e professora Fabiana Wielewick e Marcus. A primeira mensagem é dela, relatando um sonho que teve com ele: “Estávamos em um terraço com muitas piscinas e você “treinava” para uma performance. Era um super desafio, pois quando você mergulhava, a água clarinha ficava escura e você sumia. Eu ficava esperando na superfície meio aflita e pensava: ele precisa do escuro para se encontrar, para encontrar o que deseja. Era como se o abismo do escuro (as piscinas não tinham fundo) fosse algum tipo de revelação. Então me acalmei e ficava esperando teus fôlegos na superfície. De vez em quando vc trazia alguns pedaços de embarcações lá do fundo e deixava nas bordas das piscinas”.
Ao que Marcus respondeu, poucos dias antes de realizar a performance no barco: “Demorei um pouquinho para lhe responder, mas confesso que desde o primeiro momento em que li as tuas palavras não pude deixar de pensar na imagem criada em teu sonho e em meu corpo. Ainda segue aqui, perfurando as profundezas de meus pensamentos. (...) estou mergulhado num processo de criação na Patagônia Argentina, numa residência artística realizada pelo Centro Rural de Arte (...) Ao acordar com o som das ondas bravias do lago, vejo apenas os matizes de cinza que cobrem a Cordilheira dos Andes de ponta a ponta. A intensidade dos azuis vespertinos é de um esplendor jamais imaginado. (...) Nesta 5ª feira realizarei a última ação do meu projeto aqui na residência, chamada ‘O último desejo’, e a dedicarei a ti. Não lhe contarei nada agora, mas sinta-se presente na minha escuridão. Só com o sonho é possível. O sem fundo da água desabrocha em mim com espanto.(…) Obrigado por me fazer saber que precisava do escuro para me encontrar, para encontrar o que desejo”.
A conversa termina com uma breve mensagem de Fabiana: “Desejando um bonito mergulho no escuro para alguém muito especial (em silêncio)”.
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A performance “O último desejo”, descrita na abertura deste texto, é a culminância e ao mesmo tempo o encerramento do projeto “O desejo é o rastro”, realizado por Marcus no outono de 2011, durante essa residência artística, ocorrida com restrito contato com outras pessoas (apenas os três artistas participantes e uma equipe com menos de cinco pessoas na produção do projeto). Os próprios registros das ações foram feitos pelos participantes, em revezamento, de modo que a série fotográfica e videográfica “Deseos” teve o artista colombiano Jimmy Rangel operando a câmera, enquanto Marcus desenvolvia suas ações. “O último desejo” foi a única ação artística de Marcus aberta ao público, realizada numa praia local, ao anoitecer, com duração pouco inferior a uma hora. No registro em vídeo disponibilizado no YouTube, podemos inclusive ouvir sons de crianças, situadas fora de quadro, rompendo ocasionalmente o silêncio dos adultos.
No documentário em longa-metragem “Presença” (2024), utilizo um dos poucos depoimentos em vídeo que Marcus deixou gravado, falando sobre o projeto realizado naquela região. Transcrevo aqui a fala, traduzida do espanhol, enunciada no começo do período daquela residência artística:
“Meu projeto se chama ‘Meu desejo é o rastro’. É um trabalho pessoal, que fala muito de mim, o tempo todo. Fala de minhas sensações, do que sinto, do que vejo, do que vivo. Pode-se dizer que é um trabalho biográfico. Nesse projeto, parto de uma ideia que se baseia em coincidências e acasos. A primeira é ter nascido na ilha de Vitória, que não é esta, mas, uma um pouco maior, com um pouco mais de gente, um pouco mais de ruído, com internet e telefone. Queria aqui propor desafios para mim mesmo: desejar-me desafios.Meus desejos são bem pequeninos, são pequenos desejos”.
Cerca de vinte dias depois, já realizada a maioria das ações propostas pelo projeto, e retratadas em vídeos e séries fotográficas como “Deseos”, “Bicho do Mato” e “Cuerpo-Paisaje”, Marcus já tinha um outro entendimento do que seria a dimensão do próprios desejo. Na mensagem endereçada a Fabiana, ele fala que o projeto trata de seus medos e temores. E segue descrevendo: “Uma série de pequenos contos sobre os possíveis futuros e passados de um ser, alguns com mais, outros com menos indícios. São minhas histórias, verdadeiras e falsas, com e sem fim. Tenho entrado nos mais remotos mistérios enquanto durmo, que apenas afloram nos meus sonhos. Sinto-me indefeso em relação ao mundo que se abre a cada dia. Nestas ações, acumulo o desejo”.
Nesse interstício, os “pequenos desejos” foram se tornando mais complexos, com objetivos mais ambiciosos e não tão capturáveis assim pelas limitações da racionalidade. Terminada a residência, ele escreve um texto que leva o nome da última ação do projeto, no qual afirma: “Banho-me em toda a escuridão devorante, quero conhecer a profundidade de meu desejo. Quero conhecer a todos os meus sentimentos (...) O silêncio invade todos os interstícios de minha escuridão. E se não há risco?”
Ao aceitar correr os riscos desse processo de imprevisível autodescoberta, Marcus se apropria aqui da expressão “banhar-se na escuridão devorante”, presente no livro “Um sopro de vida”, de Clarice Lispector, o último escrito pela autora e publicado em 1978. Apropria-se não apenas como metáfora (se entendermos o tipo de motivação intuitiva ou mesmo espiritual que levou a realização de todo o projeto), mas também da própria experiência sensória e perceptiva do sol-pôr, proporcionada aos espectadores presentes na Playa del Toro. É como se testemunhar a chegada gradual da penumbra, e o consequente entorpecimento dos sentidos fosse mais do que uma experiência efêmera e corriqueira, algo que nos lançasse em outro tipo de partilha: vislumbrar o artista a contemplar silenciosamente sua própria escuridão passa a ser um convite para que também encaremos a nossa própria. Bem mais, portanto, que um alumbramento, aquele tipo de insight de leveza fugidia que costumava surgir frequentemente diante de quem presenciasse alguma das performances públicas de Marcus no espaço urbano. Os riscos desse mergulho agora também são nossos, não somente dele. Temos aqui um adensamento, um apenumbramento.
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É interessante perceber como essa estadia de quase um mês em Isla Victoria aprofunda experiências vivenciadas pelo artista no começo daquele mesmo ano, quando esteve, como participante e um dos curadores, em outra residência artística em Terra Una, com uma duração menor (nove dias), um número bem maior de participantes e um caráter mais coletivo. O contato com a natureza, a fruição dos seus ritmos, silêncios e pulsações, os mistérios e estímulos vindos das matas, levaria Marcus a mergulhar, em alguns momentos, numa espécie de devir-animal, que despertaria o desejo de “ser bicho”. Isso inclusive reverberaria em trabalhos posteriores, não só em Isla Victoria, mas também em vídeos como “Untitled”, “Landscape” e alguns desdobramentos da série “Bicho do Mato”, todos realizados no decorrer de 2011.
É como se a natureza e suas múltiplas coexistências trouxesse um novo sentido aos já usuais rituais silenciosos realizados pelo artista em suas performances, antes predominantemente urbanas. Conexões intuitivas, sensoriais, rítmicas, gestuais, tudo movido pela pura experiência do estar ali, fosse num campo de milho no sul da frança (“Landscape”), num pasto à beira de uma rodovia argentina (“Untitled”) ou numa mata mineira (“A Vaquinha Performática” e “Cervo”, ambos da série “Bicho do Mato”), em que ossadas encontradas ao acaso dariam origem a novas máscaras faciais e novas personas, cada qual com desejos e narrativas oníricas muito próprias.
Outras microscopias, outras levezas e, por que não, outras possibilidades de cura, para além do fogo, da pólvora e das explosões com que Marcus havia fundado e refundado diversas vezes seu corpo performático, em especial nas incursões realizadas em outra ilha, bem próxima de sua ilha natal, a de Vitória: a Ilha da Pólvora. Antes ele percorria as ruínas, às margens da ilha maior, com ares de metrópole, como uma outra forma de observá-la à distância e purgar-se de seu frenetismo e impessoalidade muitas vezes adoecedores. Agora, o contato direto com algo que antecede o humano e encerra múltiplos mistérios pede uma nova refundação do corpo, desta vez não apenas na dimensão física. Uma autorreinvenção a partir do desejo de opacidade (tal qual proposto por Édouard Glissant), ao não se restringir ao inteligível e a um certo imediatismo das respostas fáceis.
E é também nesse momento em que o onírico passa a ganhar maior presença em seus trabalhos, porém bem distante de uma repetição da estética surrealista. Se antes os objetos cotidianos eram incorporados a partir de sua potência banal, dos pequenos alumbramentos que ativavam novos modos de usá-los com e a partir do próprio corpo, agora as metamorfoses é que passam a ser recorrentes na obra de Marcus. Talvez a culminância disso venha no vídeo “Everything imaginable can be dreamed…” (2012), em que os objetos e materiais encontrados numa casa em ruínas são incorporados a partir do que suas formas podem evocar, mais do que pelo significado que eles usualmente já possuam.
Podemos perceber o gradual florescimento dessa abertura às metamorfoses já neste mergulho junto à natureza, empreendido tanto em Terra Una quanto em Isla Victoria. Tomemos como exemplo o díptico “A vaquinha performática”, da série “Bicho do Mato” (Terra Una, 2011), em que Marcus é fotografado de frente e de costas com uma ossada bovina envolvendo seu pescoço. Ele, de olhos fechados, parece atentar para algo que ressoa muito além do que a audição ordinária conseguiria captar – e as extremidades do osso, dispostas sobre seu peito, remetem a receptores sonoros, como que conectados a seus ouvidos, capazes de evocar um estado de transe clariaudiente e clarividente.
Em “Beyond” (2011), performance realizada nas ruas de Pärnu, na Estônia, quatro semanas após o término da residência patagônica, a própria ideia de ilha retorna metamorfoseada: afinal, viver em ilha pressupõe não uma mera circularidade existencial, mas sim uma compreensão espiralar do tempo e do próprio percurso. Nesse trabalho, Marcus replanta um buquê de flores num pequeno balde metálico, atando-o diretamente ao rosto, e caminha pela cidade de posse de um regador com água, oferecendo o aos transeuntes para que ajudem a cultivar sua máscara-ilha.
Não se trata somente de uma ampliação onírica de suas fotoperformances “Corpo-paisagem” (2009) e “Corpo-Flor” (2011), mas também de uma reinvenção da ideia de máscara, tão recorrente em inúmeros de seus trabalhos, que vem pelo menos desde a série “Os outros” (2008), e seu inocente jogo de alter-egos criados a partir de alguns objetos domésticos. As máscaras seguem sob a metáfora de cura e isolamento na série “Contagion_Project” (2010) e vão ganhando outras camadas para além do lúdico, em obras como “Ninguém” (2010-2011, um rosto com recortes de outros, obsessivamente amontoados), “The Horizon’s Edge” (2011, as revistas e livros extraídas da estante, com suas fotografias de paisagens) e “Frágil” (2009-2011)– que inverte a expectativa usual do rosto ser lido como mapa emocional, à disposição de todos, ao apresentar os olhos como cavernosos, camuflados, profundos. Indecifráveis.
Elas também reaparecem, misteriosas, nas ossadas animais, iniciando-se em “Contato” (2009) e seguindo pela série “Bicho do Mato”. E vão se tornando mais radicalmente imersas na opacidade, nos trabalhos realizados a partir do segundo semestre de 2011: na cera da vela em “The presence of the world in me (parts I & II)”, nos alimentos (ovos, mel, leite) da trilogia “Not only in this world”,nas pedras que ameaçam decolar nos giros corporais de “When the dreams die…?” e na fascinante máscara de tiras negras, a sacolejarem no já citado vídeo “Everything imaginable can be dreamed…”.
Não a título de conclusão, mas talvez propondo partilhar a inquietação que me moveu a escrever esse texto, compartilho aqui algumas dúvidas sobre aquela que talvez seja a máscara que mais me impressione, dada sua condição de indecifrável, em todo conjunto da obra de Marcus Vinícius. Trata-se de “Força Bruta (ou Busca Exaustiva)” (2011), ação realizada durante a estadia em Terra Una e um dos poucos trabalhos dos quais não restou sequer uma linha escrita pelo artista a seu respeito – nem mesmo uma justificativa para o título, inspirado num tipo de algoritmo que soluciona problemas a partir da enumeração e testagem exaustiva de todas as alternativas possíveis disponíveis.
Essa máscara é composta por gravetos, recolhidos do chão durante uma caminhada em meio à mata, que vão sendo enfeixados e posteriormente atados ao rosto. Os registros fotográficos (feitos por Denise Alves-Rodrigues e Bernarndo Mosqueira, na época divulgados oficialmente por MV) conferem certa imponência e elegância ao busto do performer, valorizando um tom escultural e a semelhança das texturas presentes nos gravetos e na mata ao fundo.
Ao se assistir ao registro em vídeo (que permaneceu inédito por 13 anos), percebemos, porém, haver uma gestualidade corporal bastante distinta das fotos, especialmente após o momento em que Marcus cobre seu rosto com o primeiro feixe de gravetos que havia reunido e amarrado. Como se agindo intuitivamente, já com a face encoberta e possivelmente a visão parcialmente obstruída, ele vai coletando novos gravetos aleatoriamente no chão, e adicionando a máscara com destreza e naturalidade antes não-observadas. A forma com que passa a posicionar suas pernas nos remete a um ser silvestre, esguio, meio mágico e gracioso. Ao se levantar, curiosamente, sua postura corporal fica mais titubeante, talvez pelo fato de ter que caminhar de olhos praticamente “vendados” na mata. Uma pequena e breve contradição? Ou seria uma irrupção da opacidade, nos termos concebidos por Glissant?
Muito rapidamente, e sem maiores cerimônias, porém, ele dá as costas à câmera e se afasta rapidamente, adentrando a mata e seus segredos – como se mais uma vez quisesse se banhar na imensa penumbra ao mesmo tempo exterior e íntima, que ali está à sua espera. Talvez seja mais um convite, dentre os muitos que ele nos faz, silenciosamente. Um convite a percorrer nossos próprios apenumbramentos. E eu aceito.
Erly Vieira Jr
junho de 2024
Referência bibliográfica
GLISSANT, Édouard. “Pela opacidade”. In: Revista Criação & Crítica, n.1, p. 53-55. USP: São Paulo, 2008. Disponível em: https://revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/64102/66809