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Primeira de três vinhetas animadas elaboradas por Filipe Dell'Antonio, criador da identidade visual do projeto "Imensidão Íntima - Acervo Audiovisual Marcus Vinícius" (abril de 2024).

defender o silêncio
uma ficção-fantasma sobre nossos encontros com a solidão, livros e cachoeira
___

nunca só

o texto tenta fluir, organizado por encontros e o que cada encontro faz começar. começa agora mas começa antes. e continua. posso nomear primeiro o encontro que é escrever a convite de erly este texto para o site do projeto imensidão íntima, acervo audiovisual marcus vinícius. combinamos o tamanho do texto, os prazos sobretudo. aqui estão as palavras mas não há isso de palavras. nunca há palavras, como nunca há imagens. nunca só, porque não é pouco uma imagem nem é pouco um texto. nem pouco, nem sozinho. a imagem e a palavra não vêm sós. é sempre muito uma imagem. sempre uma multidão de coisas a considerar.

 

meu ombro vermelho

mas antes de estar aqui, na escrita, subi a serra num dia quente de aquecimento global – e não de quem estranha o calor porque vem de uma outra cidade-ilha, mais ao sul, com frio e ciclone extratropical. antes de estar aqui escrevendo, fui a moxafongo e senti a água fortíssima chocar-se em queda no meu ombro. até ficar vermelho. sentia na intensa e ativa imobilidade para não ser levada, agarrando pedra e planta, para me manter sob o peso da água que corria, que estava já escrevendo este texto. que tem sempre antes. os dedos murcharam e fiquei vermelha porque a pele queima de sol, de água torrencial, de desejo.

 

seu corpo nu entre escombros

na sala de aula, na sala 4, em específico, do cemuni 2 da ufes, localizo um primeiro encontro com o trabalho de marcus vinícius. um estudante propôs apresentar território expandido ii em seminário. sem uma lista rígida prévia, como professora, tento acolher as sugestões do que não conheço ou não planejei. ensinar quando se quer aprender, li de um monge, ou iogue [1]. era meu começo na docência, na ufes, na cidade de vitória. e no vídeo, vi as ruínas de um prédio, as ruínas da educação, poderia ter anotado. vi marcus vinícius lá dentro e alguém que o acompanhava com a câmera, ambos furtivos no espaço escuro, impregnado de abandono. seu corpo nu entre escombros. pisando em cacos de vidros e fezes de animais, desviando de restos de pombos, ele relata [2]. num prédio com nome de mulher. de uma professora. o edifício das fundações professora georgina ramalho, onde em 2007 ele fez um conjunto de 17 ações. frágil e corajoso, eu pensei na época. e ainda penso.

ao rever o vídeo, agora, fico me perguntando, muito seriamente: como devo assistir os trabalhos em vídeo que marcus vinícius produziu? há uma forma indicada, que permita uma relação mais acurada, mais próxima? assisto em casa, na tela do computador, em uma das muitas abas abertas, com reportagens e pdfs para ler, reler ou recém lidos, lembrando que são 500 horas de vídeo postados no youtube a cada minuto em 2019, que, em 2007 (!) 70% do total de dados era de spam – lido numa nota de rodapé do ensaio de hito steyerl [3], que 38% das páginas de internet de 2013 não estão mais disponíveis [4], que um data center do google a ser instalado no uruguai, cuja população recebe água intragável em tempos de emergência climática, envolve o consumo de 7,6 milhões de litros de água da rede pública por dia [5], dos cinco quilos de ouro apreendidos com toneladas de carvão sendo ilegalmente exportadas para as corporações de tecnologia – tesla, amazon, microsoft, google... qual?

eu insisto, como olhar?

 

o livro vibra

em haparanda, na suécia, onde nunca estive, marcus vinicius lenta e progressivamente cobre o corpo com os livros. ele retira um a um das estantes. não sei se era uma biblioteca ou uma livraria, me dou conta agora, não sei se definiu previamente quais. com uma fita adesiva, faz os livros aderirem ao seu corpo. leva tempo. há um momento em que ele pede ajuda. um pouco antes, cobrira também o rosto com livros, interditando a visão. uma mulher entra no quadro e o ajuda. o livro vibra. depois, o artista se vira e, sob os livros, se volta para as pessoas, para a câmera e também para nós, futuros-presentes espectadores da imagem de vídeo. ele permanece nesta espécie de pose, imóvel por alguns momentos. ouvimos palmas. monto a ação de the horizon's edge (o horizonte é o limite), a partir do acesso que o vídeo me faculta, compreendendo o lugar e a presença das pessoas, a pose – quando paradoxalmente o artista se mostra encoberto de livros e portanto tem sua presença menos evidente na imagem –, o enquadramento fílmico e institucional da obra. mas nestes 19 minutos, sem cortes, também vejo um impensado raio de sol na roupa leve que ele usa, os seus gestos na duração que têm – como rasga a fita, por exemplo. vejo os livros se somando e me pergunto se o desejo é integrar-se ou se, feito bicho mimético, de disfarce, fuga, desejo de tornar-se invisível, indistinguível, de manter-se ileso?

e viver me deixa trêmulo*

entre corpo e imagem, não só os livros – abertos, com os miolos em contato com o corpo do artista e as capas expostas – mas marcus vinícius também usa postais de diferentes cidades para cobrir o corpo. imagens das cidades. e das cidades vem as imagens, remetidas via postal a pedido do artista para madri especificamente para a performance viagem sentimental. em ninguém, 2011, usa recortes de revistas. e é com as imagens que se encobre, se embala. também deixa seu rosto submergir em materiais como cera, mel, leite, ovo, cinzas. se deixa impregnar, marcar, perder a visão. na ação intitulada beyond (além), seu rosto fica parcialmente encoberto por flores amarelas em um vaso. criei uma ilha, ele escreveu na sinopse do trabalho. uma espécie de atadura enrolada ao redor do seu pescoço mantém o vaso suspenso. há uma preparação – algumas visíveis no vídeo, como reunir a terra espalhada no piso de madeira (lembro das mãos de richard serra e philip glass em hands scraping) umedecê-la, preencher o vaso como se fizesse um plantio embora seja mais um artificioso arranjo de flores, acoplar o vaso no corpo. assim, ele caminha nas ruas de uma cidade na estônia sem ver, ou melhor, vendo, de perto, a planta. e pede, cúmplice, ajuda para regá-la. descalço, performa o cultivo do cuidado.

metros de fita adesiva repetindo a fragilidade do seu corpo etiquetado são usados na performance frágil, em que expõe e distingue sua presença no contexto urbano. na cidade, ao embalar-se, seu corpo se esconde e se expõe. e se desloca com reduzida fluidez de movimentos. ao contrário de um corpo embalado – em sono, em dança, o corpo embalado e etiquetado frágil tem gestos robóticos.

em outros trabalhos, marcus vinicíus se coloca em reentrâncias, entre galhos, frestas de rochas. em buraco escavado na terra. também se equilibra em troncos, pedras. vaga. permanece encolhido numa cavidade ou degrau de escada. para uma foto. para um vídeo. por horas. por um dia sem noite. por uma última noite. suas ações duram. concordo na insistência em usar o presente [6].

 

um tempo sem horas*

em o desejo é o rastro, a pólvora queima por alguns intensos segundos. ele olha o mar. de costas para o que queima. e o que está ao redor nos invade. respinga, chamusca. um minuto, um degrau. a pólvora alinhada acompanhando a sombra do degrau de cima. em zenital, vemos o artista nu, preparando cuidadosamente essa linha. o tempo se estende e se gasta. qual a medida? quando é proporcional o risco? o tempo que investimos, que nos preparamos? para um encontro? para um trabalho? menos de cinco segundo e o fogo queima. da linha no chão, o fogo arde e a fumaça se ergue e se dissipa. ele move o pé direito, instantes do começo. em outra ação, é uma linha circular que queima ao seu redor. em uma fresta de azulejo quebrado onde corria água ou fio elétrico provavelmente levado. hoje pendem intrusas samambaias. dispêndio, como marca erly na aproximação da experiência de marcus vinicius e a escrita de bataille [7].

na ilha da pólvora, nas ruínas do hospital de isolamento oswaldo monteiro, marcus vinícius realizou 19 ações em 2007 e 2010. é uma ilha impressionante. quando visitei a ilha em 2021 vi seus vídeos diretamente projetados nas paredes marcadas do espaço em ruínas [8]. o que resta, sempre transborda, vaza. uma dobra. o que fora levado pelo artista – uma imagem sua e incandescente, como tudo o que vive – volta. esta dobra dos dois tempos – e que quero fazer durar e mais que durar, dobrar-se também nestas minhas palavras até outro tempo-leitura, é o que me fascina. a potência frágil e impensada que não é só entre a performance e a imagem fotográfica ou videográfica, mas de tudo o que existe e se projeta. não é possível que algo que não existe desapareça. porque algo existe é que pode desaparecer. (...) mesmo que desapareça, algo que é existente não pode ser inexistente [9]. acreditar que o efêmero dura é tão surreal quanto que o durável não pereça. só há voltas, transformações, dobras, possibilidades de uma coisa acionar outra. mas nada podemos reter ou controlar. o vídeo conta menos do que ficou e mais do que e por onde se pode continuar imaginando, neste sentido muito literal de fazer imagem, do que não está (e nunca está) estritamente visível.

 

no centro da cidade de vitória, no meio de uma tempestade que desaba, escutamos a bateria da escola de samba.

 

na sete, que foi um rio

desconcerto que faz vibrar. e irrompe. interrompe. penso no relato de leonardo vais, artista-amigo que lembra de marcus sambando na sete, essa rua que foi um rio. o morro desaba, o plano alaga.

marcus vinícius intitulou uma curadoria sua sobre as águas da solidão e o olhar, em 2008, onde explora seu interesse pela água. nesta exposição, ele incluiu um trabalho de outra artista sobre o qual escrevi um texto chamado sobre o mar, o pôr-do-sol e a solidão (e certos truques também), publicado em 2008 [10]. não nos conhecemos, eu e marcus vinícius. é estranho descobrir parentesco nos títulos de sua curadoria e meu texto, perceber que olhamos dedicados um mesmo trabalho.

e a partir desse trabalho, penso na posição que ele assume diante da câmera. ora de frente, ora de costas. às vezes no mesmo vídeo os planos alternam essas posições. alternam também o que se configura como pose e uma impressionante imersão nos gestos – a despeito das tomadas de posição e movimentações de quem filma. há, por vezes, um inquietante orifício para os olhos. em outros trabalhos, os olhos estão vendados. quando me pergunto como ver, me vejo também interrogando a relação do artista com as pessoas e a câmera. embora seu trabalho tenha o corpo em performance como base, os registros são muitos e deduzo que tenham sido estabelecidas relações diferentes com as/os diferentes colaboradoras/es que produziram as imagens das ações.

 

toda presença é precária*

marcus vinícius participou de muitos festivais e residências, se deslocava para estar presente. o que envolve tempo, recursos financeiros, uma entrega e uma disponibilidade para o trabalho. o que num país como nosso não é tarefa simples. não é arriscado concluir que importava profundamente a presença. ao mesmo tempo, sigo me interrogando como ver seus trabalhos e me recuso a ver as imagens como só vídeo. nunca só. porque nunca é pouco. e nunca é sozinho. fazer imagens envolve desejo. desejo de prolongar, projetar, deixar marcas, como escreve perec [11]. desejo de endereçar, como escreve mondzain: o visível supõe a alteridade, é essa aqui a lição da imagem [12]. para a autora, ao ver a imagem acedemos no visível o que o transborda e ao mesmo tempo esvazia. o visível não contém a imagem assim como o que é finito não contem o infinito, o visível é a marca, vestígio de uma presença incomensurável, mondzain argumenta.

marcus vinicius não trabalhou com a noção de performance como um evento autônomo, que prescinde e antecede qualquer registro, nem parece ter encarado como opostas as possibilidades de documento/pose. a imagem de vídeo, como outras formas de conceber, processar e constituir um trabalho calcado na experiência duracional do corpo, não é via de acesso a uma ação separada e anterior, mas participa na sua inscrição e produção de sua legibilidade como performance. pensamos no arquivo como reunião do passado e esquecemos que o arquivo funda o arquivável, como frisa derrida, portanto, marca, desenha o futuro. philip auslander [13] destaca que o sentido de presença não se refere apenas à relação entre documento e evento, entre imagem e performance, mas também à relação que a imagem estabelece com o observador. as imagens nos contam de uma sensibilidade, do projeto estético de um artista, do qual, frisa auslander, somos no presente, o público.

me pergunto como ver. como marcus vinícius pensou as imagens, pois mesmo que não olhe durante a tomada, que outra pessoa opere a câmera, filmar cria uma posição entre quem vê e quem é filmado. tem sempre um (ou vários) enquadramento, uma resolução. uma experiência de olhar. e olhar, repito, envolve endereçamento. mesmo fechando os olhos, como beckett coloca buster keaton a fugir do olho em film, 1965. é angustiante e difícil a fuga do olhar. de ser olhado. de se pensar sendo olhado. como excluir-se da percepção? da relação entre olhares?

 

vazando do visível, olho um casal que por mais de meia hora observa marcus vinicius em performance. no fundo. em um momento os rostos se aproximam, sussurram suponho, se acariciam. a resolução não me deixa ver tudo.

 

minha vida é demasiado grande para mim*

de espera, a performance de mais longa duração de marcus, com 2 horas e 49 minutos, há duas versões em vídeo. um plano filmado por julio callado com cerca de três minutos e meio é um plano muito bonito, enquadrando a cachoeira e no alto, de costas, marcus vinicius imóvel. há um zoom out e no fim vemos um casal e uma criança na cena. outra versão, filmada por rubiane maia, com aproximadamente seis minutos, acompanha de perto a ação, o gesto do artista de atar-se nas árvores, seus pés na água antes da queda, as plantas. o que ele escreve sobre o trabalho, os minutos filmados e editados em vídeo, as fotografias que enquadram seu corpo com maior legibilidade e encanto, sei que tentam e não dão conta de construir isso que durante a performance imagino ter sido o encontro de artista e água. sei que o som ruidoso da água preenchia tudo.

 

defender o silêncio*

o título deste texto vem de uma frase de marcus vinícus: defender o silêncio, ele escreveu. defender também o sonho, o poético, a invisibilidade, a solidão, a experiência. em outros escritos, ele menciona as oscilações entre isolamento e os encontros. as trocas e as viagens, o trabalho envolvido para mostrar, difundir e pesquisar performance na organização de eventos, trazendo artistas para vitória. penso seu trabalho na medida de silêncio e de imobilidade e de preparo cuidadoso. e isso envolve reagir à apatia, à economia da atenção, ao modo contemporâneo de lidar com as imagens. reagir à apneia visual, como se refere mondzain. marcus menciona a solidão e penso no que dizem tarkovski e deleuze, indicando a jovens artistas e estudantes que cultivem a solidão. deleuze comenta a tarefa no verbete professor do abecedário, tomando como papel do docente ensinar-lhes os benefícios da sua solidão, reconciliá-los com sua solidão [14].

e o tempo do vídeo? o que é? não escutamos sua voz, ele está sempre calado nos vídeos. introspectivo, concentrado nas ações. o aspecto não narrativo e o tom mais ou menos contemplativo dos vídeos, me levam a perguntar de novo: como se vê? como se assiste seus videos? no canal do acervo no youtube, os 47 vídeos estão organizados em seis programas. o que não impede de adotar tempos e sequências próprias. tenho assistido aos poucos. sem acelerar, porque sou de uma geração que escutou em voz enérgica que não pode pôr a mão na tv. suja, estraga, sai da frente. enquanto assistia um filme, não se via o tempo que faltava, não se antecipava, não se pulava cenas. não se podia comprimir o tempo. ver incluía lidar com a expectativa. com as partes monótonas. com o medo de que aconteça, medo de que não aconteça, do que nem sabemos que pode acontecer. não se podia burlar a experiência duracional. o tempo, a demora, a ansiedade, a espera sentidas no corpo. onde mais se pode sentir?

vejo mais distraída agora? de forma mais fragmentada? como ver vídeos na quantidade em que nos são impostos? como dar tempo a cada imagem se são tantas? compulsão e fadiga de olhar. tento olhar com atenção. me sinto obsoleta. exemplar anódino de criatura em extinção.

 

transportar um brilho úmido nos meus olhos*

o poeta nanao sakaki escreve de uma poça d´água que reflete estrelas, nuvens, árvores, pássaros, humanos, reflete também a si mesma e ao universo. e não deixa vestígios: uma pequenina poça d´água / reluz / até secar & sumir [15].

é o que faz uma poça: reluz e seca. é o que podemos fazer. também a gente seca, desidrata, some. mas refletimos a nós mesmos e o universo todo. essa noção de intensidade e presença efêmera me parece muito profícua para olhar as ações de marcus vinicius. outro poema de nanao sakaki que eu gostaria de ter compartilhado se o tivesse conhecido é  kokopelli. este poema começa com uma citação, dos antigos hopi, que enuncia: eu sou uma canção. e então, cada verso tenta descrever o aqui por onde a canção caminha: o começo do dia, a brisa, as flores, pássaros. importa onde a canção faz encontro, e não as coisas. onde o começo do dia te encontra. no final, o poeta afirma ser uma canção e, portanto, caminha aqui. e te encontra aqui, na leitura. penso que marcus vinicius é uma canção. me encontra aqui. nos encontra aqui. onde quero dizer que sou uma canção. e que o encontro aqui. e também a quem lê.

 

“eu sou uma canção

eu caminho aqui” – antigos hopi.

 

aqui quer dizer

onde o começo do dia te encontra.

 

aqui quer dizer

onde uma brisa te encontra.

 

aqui quer dizer

onde as flores te encontram.

 

aqui quer dizer

onde os pássaros te encontram.

 

aqui quer dizer

onde uma canção te encontra.

 

eu sou uma canção

eu caminho aqui. [16]

 

este poeta vitalista propicia encontros e me faz pensar na dimensão metamórfica que venho estudando. no ano anterior à sua morte, na turquia, marcus fez três performances com o subtítulo (not only in this world), tendo como título os materiais usados para imergir sua cabeça: egg, honey, milk. ovos, mel, leite. são performances de 11 a 16 minutos, realizadas na estonia, finlandia e letonia. quando vi esta série, pensei muito na trilogia de semih kapanoglu, também com títulos de ovo, yumurta, 2008, leite, no original süt, 2008, e mel, bal, 2010. estes três longas têm um personagem de mesmo nome, yusuf, como protagonista. no primeiro, ele é um poeta que vive em istambul – o filme começa em um sebo/livraria, onde ele trabalha – e retorna à sua vila com a morte da mãe. no segundo, yusuf é jovem e vive os desejos e frustrações de inscrição social, e no último, caminhando ao contrário, ele é um menino que lida com o pai apicultor que não retorna da floresta. sua mãe, de quem acompanhamos o funeral no primeiro filme, é aqui uma plantadora de chá. além da delicadeza com que encontros e gestos são filmados, com planos longos e silenciosos, percebo nestes três filmes, a incontornável transformação e o reconhecimento da fragilidade e do risco que parecem ter mobilizado marcus vinicius. 

 

durante 24 horas, calar-me*

enquanto escrevia este texto, mantive o livro organizado por erly por perto. consultando suas obras, relendo. e fico olhando o seu olho na quarta capa do livro na minha casa o tempo todo. um livro fica junto. ser leitora é atividade irrastreável. diferente das redes, na qual nossos rastros como usuários são cooptados e monetizados, nos livros impressos as marcas que deixamos são para outros leitores. o corpo vê as imagens. vê o trabalho ardente e a chama que se mantem acesa no resquícios que marcus vinicius deixou nas fotografias e vídeos, como aponta tales frey. escrever, diz nancy, é tocar a extremidade. não é significar, escrever não quer dizer mostrar ou demonstrar, mas indica um gesto para tocar no sentido. um tocar, um tacto que é como o gesto de endereçar: aquele que escreve não toca apreendendo, prendendo na mão mas toca quando endereçado, enviado ao contato de um fora, de algo que se subtrai, se aparta e se espaça. para nancy, a distância importa, pois não se trata de transubstanciação nem de fusão, mas como no contato dos corpos dos amantes, que se tocam e renovam o espaçamento. trata-se da excrição do corpo, sua inscrição-fora, sendo a deslocação fora-de-texto como o movimento mais próprio do seu texto [17]. nancy frisa: não conheço nenhuma escrita que não toque ou então não é de escrita que se trata, mas de um relatório. neste sentido, o corpo não é uma superfície de inscrição, não é onde se escreve nem aquilo que se escreve, mas o que a escrita excreve. dito de outra forma, para nancy, aquilo que, de uma escrita e propriamente dela, não é para ler, eis o que é um corpotirando da leitura uma qualidade decifratória, passa a ser questão de contato, de tocar e ser tocado, ler e escrever.

 

não termina de ser*

no começo deste ano, quando assisti the horizon's edge (o horizonte é o limite) na íntegra, passei a pensar em marcus vinicius presente no espaço da antiga livraria âncora, esvaziada há anos, onde trabalhei na produção do projeto pão ganha-pão nos últimos meses. essa impressão forte me levou a convidar o trabalho e integrá-lo na exposição [18]. achei que faria sentido num espaço cheio de estantes vazias, marcados por tantas memórias de livros ausentes, ver o artista na tela entre os livros num interior sueco da década passada, por minutos, deslocando pacientemente os livros e prendendo-os a seu corpo. vestindo-se de livros.

durante o processo de montagem da exposição, em uma tarde quente, vi kleiton, estudante de artes, e que integrou a equipe do educativo, absorto pelas imagens. enquanto ele olhava o vídeo, um imprevisto raio de sol iluminava a roupa branca de marcus vinicius na tela da tv e, ao mesmo tempo, eu via um outro raio de sol entrando no espaço da livraria/exposição e incidindo em kleiton. duas incidências do sol coincidiam, na sala e no vídeo – palavra que teóricos recorrem à etimologia (eu vejo) para marcar o tempo presente e imediato como distintivo desta mídia. e no presente do vídeo, e sem nos ver, coberto de livros, marcus vinícius nos olhava.

durante as três semanas da exposição, com suas várias ativações – mesas, conversas, visitas de escolas – de tempo em tempo, ouvíamos as palmas que marcam o final da performance de the horizon's edge. os silêncios, as nossas falas e escutas, os ruídos da cidade, eram marcados no loop dos 19 minutos do vídeo e éramos lembrados da presença delicada do marcus na exposição. as palmas eram para o seu trabalho. eu sorri todas as vezes, feliz que estivéssemos ali: as pessoas, o seu trabalho.

quando penso na sua frase-título de que é no meu olho que o mundo diminui*, olho seu corpo em performance nas imagens, vejo seu trabalho, e não consigo pensar assim. o mundo não diminui nos nossos olhos. olho o tanto que ficou e que continua e só consigo pensar que o mundo fica maior no seu olho.

aline dias

outono de emergência climática de 2024

sob o efeito de chikunguya

* frases de marcus vinícius, publicadas em vieira jr., erly, marcus vinícius: a presença do mundo em mim. vitória: pedregulho, 2016.

Notas:

 

[1] a frase de baba hari dass, iogue indiano (ensine para aprender) foi citada por goldberg, natalie. writing down the bones.

[2] relato de marcus vinícius, citado em vieira jr., erly, marcus vinícius: a presença do mundo em mim. vitória: pedregulho, 2016.

[3] steyerl, hito. o spam da terra: distanciamento da representação. zum: revista de fotografia, 2019 (16), 152-165. disponível em: https://revistazum.com.br/revista-zum-16/o-spam-da-terra/#:~:text=Trata%2Dse%20de%20documento%20de,a%20serem%20representadas%20dessa%20forma.

[4] disponível em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/como-a-ia-e-o-google-ameacam-devastar-a-web/

[5] a briga dos uruguaios contra o google 13 ago 2023 disponível em: https://apublica.org/2023/08/a-briga-dos-uruguaios-contra-o-google/

[6] frey, tales. ascender: considerações sobre a vida e a obra de marcus vinícius. in: revista performatus, ano i, n.2, janeiro de 2013. porto (portugal), 2013. https://performatus.com.br/perfil-de-artista/marcus-vinicius 

[7] vieira jr., erly, marcus vinícius: a presença do mundo em mim. vitória: pedregulho, 2016.

[8] visitei a ilha no contexto de produção de um conjunto de poemas para o trabalho invasoras de raquel garbelotti que integrou o projeto ocupação não sair até o rojão estourar realizado com recursos da lei aldir blanc em 2021 na ilha da pólvora, vitória es. desde a década de 1920 a ilha sediou o hospital de isolamento oswaldo monteiro, até 1990 quando foi desativado.

[9] suzuki, shunryu. mente zen, mente de principiante. são paulo: palas ahena, 1994. p.59.

[10] dias, aline. sobre o mar, o pôr-do-sol e a solidão (e certos truques também), revista um ponto e outro, museu victor meirelles, (n.4) 2008. disponível em: http://museuvictormeirelles.museus.gov.br/um-ponto-e-outro/n-4-fabiana-wielewicki/n-4-textos-criticos/sobre-o-mar-o-por-do-sol-e-a-solidao-e-certos-truques-tambem/

[11] perec, georges, espécies de espaços, também citado em vieira jr., erly, marcus vinícius: a presença do mundo em mim. vitória: pedregulho, 2016.

[12] mondzain, marie-josé. homo spectator. ver. fazer ver. lisboa: orfeu negro, 2015.

[13] auslander, philip. a performatividade na documentação de performances. poiésis, niterói, v. 20, n. 33, jan./jun. 2019. disponível em: https://periodicos.uff.br/poiesis/article/view/29014

[14] deleuze, gilles. abecedário. realização de pierre-andré boutang, produzido pelas éditions montparnasse, paris. traduzido e legendado para divulgação no brasil pela tv escola, ministério da educação. transcrição completa disponível em: https://machinedeleuze.wordpress.com/2021/06/07/o-abecedario-de-gilles-deleuze-transcricao-completa/

[15] sakaki, nanao, galáxia floresce na primavera. londrina: grafatório, 2023, p. 99.

[16] sakaki, galáxia floresce na primavera. p. 71.

[17] nancy, jean-luc. corpus. lisboa: vega, passagens, 2000.

[18] agradecimentos a família do artista marcus vinícius, principalmente a érika de souza, pela autorização da participação desta obra na exposição pão ganha-pão e a parceria com erly vieira jr., responsável pela curadoria, pesquisa e produção do projeto imensidão íntima – acervo audiovisual marcus vinícius. o projeto pão ganha-pão foi realizado em maio de 2024 no edifício anchieta, rua nestor gomes, 277, centro de vitória, com recursos do funcultura, por meio do edital nº 09/2022 seleção de projetos de artes visuais – projetos livres, da secretaria de estado da cultura do espírito santo (@secult.es).

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